FAZENDA PÚBLICA APELAÇÃO MEDICAMENTOS ATRIBUIR AO MUNICÍPIO VFP OUT02

EXMO. SR. DR. XXXXXXXXXXXX DE DIREITO DA 3ª VARA DE FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL

Proc. 2012.001.125607-3

O ESTADO DO RIO DE JANEIRO (PG-08) , nos autos da AÇÃO ORDINÁRIA que, perante esse R. Juízo lhe move JOSÉ MACRINI SOBRINHO, com fundamento nos arts. 513 e seguintes do Código de Processo Civil, vem, pela Procuradora do Estado abaixo-assinado, interpor o presente recurso de

A P E L A Ç Ã O

contra a sentença de fls. 71/78, consoante as relevantes razões de fato e de direito expostas em anexo.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2002.

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FABIANA ANDRADA DO AMARAL RUDGE BRAGA

PROCURADORA DO ESTADO

RAZÕES DO APELANTE

EGRÉGIA CÂMARA,

EXPOSIÇÃO DOS FATOS:

Trata-se de ação onde pretende o autor, portador do Mal de Parkinson, a condenação do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro a fornecerem-lhe gratuitamente o medicamento Levodopa e Carbidopa, bem como tratamento fisioterápico, sob alegação de que este suposto direito decorreria do artigo 196 da Constituição Federal.

O Juízo a quo houve por julgar procedente in totum o pedido, todavia, como se passa a demonstrar, merece reforma a r. sentença.

DOS FUNDAMENTOS DE FATO E DE DIREITO QUE IMPÕEM A REFORMA DA SENTENÇA:

Da competência do Município:

Destacou o Estado Réu que a competência para o fornecimento do medicamento pleiteado pelo autor é do Município do Rio de Janeiro.

O constituinte de 1.988, rompendo com o modelo até então vigente, inovou ao instituir o Sistema Único de Saúde como forma de garantir a todos o direito universal e igualitário à saúde, estabelecendo a descentralização como diretriz básica (arts. 196 e 198, I, da CF).

O Sistema Único de Saúde veio a ser efetivamente instituído a nível infraconstitucional quando da promulgação da Lei nº 8.080/90, sendo certo que está sendo de fato implementado gradualmente, e assim também a descentralização dos serviços.

A teor do art. 17, III, do diploma legal mencionado, compete aos Estados prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde. De outro lado, a mesma norma confere aos Municípios competência para gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. 18, I).

Dentro, portanto, da idéia de descentralização das ações e serviços de saúde, estabeleceu o legislador que a competência primeira de sua gestão e execução é dos entes municipais. Somente por exceção tal responsabilidade irá ser transferida aos Estados, e será sempre subsidiária. Todavia, a responsabilização não ocorrerá automaticamente pelo simples fato do descumprimento da obrigação originária do Município.

Em 06.11.96 o Ministério da Saúde, dentro do âmbito de sua competência, publicou no Diário Oficial da União a Portaria nº 2.203/96 estabelecendo a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde/SUS que tratou, entre outras coisas, da descentralização dos serviços de saúde.

No corpo da norma é importante destacar as seguintes passagens:

“A presente Norma Operacional Básica tem por finalidade primordial promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes.

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Isso implica aperfeiçoar a gestão dos serviços de saúde no país e a própria organização do sistema, visto que o município passa a ser, de fato, o responsável imediato pelo atendimento das necessidades e demandas de saúde do seu povo e das exigências de intervenções saneadoras em seu território.

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Os sistemas municipais de saúde apresentam níveis diferentes de complexidade, sendo comum estabelecimentos ou órgãos de saúde de um município atenderem usuários encaminhados por outro. Em vista disso, quando o serviço requerido para o atendimento da população estiver localizado em outro município, as negociações para tanto devem ser efetivadas exclusivamente entre os gestores municipais.

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São identificados quatro papéis básicos para o estado, os quais não são, necessariamente, exclusivos e seqüenciais. A explicitação a seguir apresentada tem por finalidade permitir o entendimento da função estratégica perseguida para a gestão neste nível de Governo.

O primeiro desses papéis é exercer a gestão do SUS, no âmbito estadual.

O segundo papel é promover as condições e incentivar o poder municipal para que assuma a gestão da atenção à saúde de seus munícipes, sempre na perspectiva da atenção integral.

O terceiro é assumir, em caráter transitório (o que não significa caráter complementar ou concorrente), a gestão da atenção à saúde daquelas populações pertencentes a municípios que ainda não tomaram para si a responsabilidade.

As necessidades reais não atendidas são sempre a força motriz para exercer este papel, no entanto, é necessário um esforço do gestor estadual para superar tendências históricas de complementar a responsabilidade do município e concorrer com esta função, o que exige o pleno exercício do segundo papel.” .

Como se vê, ao Estado só se imputa responsabilidade subsidiária pelas obrigações dos Municípios quando esses ainda não assumiram a gestão dos serviços de saúde, o que não ocorre na hipótese sub judice.

Considerando que a municipalidade já avocou para si a gestão e execução dos serviços de saúde de seus munícipes, há clara exclusão legal de qualquer responsabilidade do Estado, mesmo que subsidiária, na hipótese destes autos.

A prova de que a competência para o fornecimento pleiteado pelo autor é do Município e não do Estado está às fls. 60 dos autos, onde o mesmo reconhece a procedência do pedido autoral.

Deveria o MM XXXXXXXXXXXX, portanto, ter julgado extinto o processo em relação ao Estado. Está mais do que provado que a atribuição para o fornecimento do medicamento é do Município.

A permanecer a condenação do Estado e do Município no fornecimento do medicamento, o Poder Judiciário, em verdadeiro desvio de perspectiva, estará permitindo que o Autor receba, em duplicidade, a medicação, uma vez que o Estado e o Município terão que colocar à sua disposição os referidos medicamentos.

Em sendo assim, espera e confia o apelante que esta E. Câmara conheça e dê provimento ao presente para julgar improcedente o pedido em relação ao Estado do Rio de Janeiro, pois flagrante e reconhecida a competência do Município.

Ainda que assim não o fosse, impende ressaltar que as regras constitucionais previstas nos artigos 196 da Constituição da República e 287 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que qualificam o direito à saúde como dever da administração, têm todas as características de normas programáticas.

As normas programáticas, como é sabido, não geram, de imediato, direito subjetivo. Em outras palavras, a interpretação de tais normas não conduz ao entendimento de que as pessoas possam obter da Administração Pública, em juízo, todos e quaisquer meios necessários à manutenção da saúde.

O próprio Egrégio Superior Tribunal de Justiça, por sua colenda 1a Turma, ao julgar o Mandado de Segurança n. 6568, relatado pelo Ministro Demócrito Reinaldo, esposando a tese acima sustentada, decidiu que:

“Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum o direito à saúde, protegem um interesse geral, todavia, não conferem ao beneficiários desse interesse o poder de exigir sua satisfação pela via do mandamus – eis que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o munus de complementá-las através de legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 208 e 227 da CF) são de eficácia limitada, ou em outras palavras, não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente, ou não dispõem de eficácia plena, posto que dependem, para terem incidência sobre os interesses tutelados de legislação complementar.”

Afigura-se bastante claro e evidente ao bom senso que o asseguramento constitucional do direito à saúde não torna o cidadão credor universal da Administração Pública nessa área, sujeito ativo de uma relação jurídica ex legge, cujo objeto descambaria para um poder ilimitado de exigir toda e qualquer prestação relacionada com ela.

Neste sentido é o entendimento da quase unanimidade dos comentaristas da Constituição Federal de 1988, como são exemplos as lições de J. Cretella Júnior e Pinto Ferreira , que, ao tratarem sobre o citado artigo 196 , são categóricos em negar lhe efetividade, a saber:

“A proposição concretizada na regra ordinária civil “a todo direito corresponde uma ação que o assegura”(Código Civil , art. 75), é válida apenas para a relação jurídica em que as partes são reciprocamente credores e devedores de direitos e obrigações. Na regra jurídica constitucional que dispõe “todos têm direitos e o Estado tem dever”- dever de saúde – na realidade, “todos não têm direito, porque a relação jurídica entre o cidadão-credor e o Estado-devedor não se fundamenta em vinculum iuris gerador de obrigações, pelo que falta ao cidadão o direito subjetivo público , oponível ao Estado, de exigir em juízo, as prestações prometidas, a educacional e a saúde , a que o Estado se obrigara, por proposição ineficaz dos constituintes, representantes do povo. O Estado deve, mas o debet tem conteúdo ético, apenas, conteúdo que o bônus administrador procurará proporcionar a todos, embora a tanto não seja obrigado.”

(J. Cretella Jr- Comentários à Constituição de 1988, Vol. VIII, 1ª Ed. pág. 8338 )

“A saúde é direito de todos e um dever do Estado (art. 196).

Tal direito de saúde na realidade é bastante inócuo, pois não cabe a determinada pessoa uma ação para exigir do Estado o cumprimento de tal direito.

Apesar de o CC estabelecer em seu art. 75 que “A todo direito corresponde uma ação que lhe assegura”, não há nenhuma ação conferida à pessoa para tornar completo o direito à saúde.

Um direito sem ação a assegurá-lo nada é: também uma ação sem direito que o fundamente não é nada.

Assim sendo, o direito à saúde é uma mera ilusão constitucional caso não seja estatuído como direito público subjetivo acionável contra o Estado ou o Poder Público. Mesmo assim só terá possibilidade prática de realização se houver uma infra-estrutura econômica e material que permita a construção de hospitais, fabricação de medicamentos e a elevação de números de médicos e a sua eficiência no combate à doença.”

(Pinto Ferreira, in Comentários à Constituição Brasileira, 7º Volume, Ed. Saraiva, pág. 16)

De ver-se que, mesmo os constitucionalistas que incluem o referido art. 196 no grupo de normas conferidoras de direitos sociais, que ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado, reconhecem que a verificação do cumprimento da norma pelo Estado é complexa e verdadeiramente cercada de limites. Neste sentido é a lição de Luiz Roberto Barroso, em sua obra prestigiada obra O DIREITO CONSTITUCIONAL E A EFETIVIDADE DE SUAS NORMAS (Ed. Renovar, 1996), verbis:

“Na Constituição de 1988, são exemplos dessa espécie os direitos à proteção da saúde (art. 196) , previdência social ( art. 6 e 201), à aposentadoria da mulher após 30 anos de trabalho (art. 202, II).

Nesse último dispositivo , o teor de objetividade da norma permite a pronta verificação do seu cumprimento ou não. Nos dois outros, muitos mais fluidos, esta verificação é complexa, e encontra limites, assim de cunho econômico como político. Os limites econômicos derivam do fato de que certas prestações hão de situar-se dentro da “reserva do possível”, das disponibilidades do erário. Atente-se bem para esta questão delicada: a ausência da prestação será sempre inconstitucional e sancionável; mas determinar se ela é plenamente satisfatória é tarefa árdua e impossível outras tantas, existem , igualmente, fronteiras políticas, tome-se, como exemplo, a determinação de melhor medida de caráter médico-preventivo, dentre as diversas existentes para conter uma epidemias. Salvo os casos extremos de inércia , ou manifesta inadequação das providências tomadas, esta será uma decisão que resvala para a discricionariedade dos poderes públicos e, pois, insindicável em via jurisdicional.”

A condenação do Estado, no presente caso, a par de todas as outras considerações lançadas acima, importa em violação dos princípios da independência dos Poderes e do orçamento (arts. 20 e 167, inc. II, ambos da Constituição Federal) e de um rosário de dispositivos relativos à despesa pública, dentre os quais se pode apontar os arts. 2º, 8º, 8º e 59 da Lei n.º 8.320/68. Violenta, também, o disposto no art. 195, § 5º da Carta Federal, segundo o qual “nenhum benefício ou serviço de seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido, sem a correspondente fonte de custeio total”.

Cabe à Administração Pública gerir seus parcos recursos. Acolhidos os pedidos veiculados através desta ação, com tão grave repercussão no orçamento estadual, está o Judiciário “administrando”, em manifesta violação ao princípio constitucional da harmonia e independência dos Poderes.

Aliás, o Eg. Tribunal de Justiça Fluminense, no julgamento da Apelação Cível n.º 1.789/98, relatada pelo eminente Desembargador CARPENA AMORIM, decidiu:

“Medida cautelar inominada destinada ao fornecimento de remédio de alto custo indispensável para a sobrevivência de pessoa com deficiência renal. Dada a carência de recurso não pode o Estado privilegiar um doente em detrimento de centenas de outros também carentes, que se conformam com as deficiências do aparelho estatal. Não pode o Poder Judiciário, a pretexto de amparar a autora, imiscuir-se na política da administração pública destinada ao atendimento da população. Manutenção da sentença.”

A assertiva também é evidenciada pelo artigo 61, parágrafo primeiro, inciso II, “e”c/c art. 25, caput, da Constituição Federal, que expressamente confere ao Chefe do Poder Executivo a competência privativa para apresentação de projetos de lei que disponham sobre as atribuições dos órgãos da Administração Pública, ou seja, que estabeleçam normas a respeito dos serviços a serem por ela prestados.

A interpretação sistemática corrobora a invasão da competência pelo Poder Judiciário em seara que aumenta as despesas do Poder Executivo.

Ora, se não é permitido o aumento de despesas em processos legislativos deflagrados pelo próprio Poder Executivo, a fortiori, não o será a criação originária de despesas mediante decisões judiciais, mormente em se tratando de serviços de saúde.

CONCLUSÃO

Por tudo o quanto se expôs, o apelante confia no provimento do presente recurso para que seja o pedido autoral julgado improcedente in totum em relação ao Estado do Rio de Janeiro por ser medida da mais lídima e conatural Justiça.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2002.

FABIANA ANDRADA DO AMARAL RUDGE BRAGA

PROCURADORA DO ESTADO