EMBARGOS FIADOR (CLAREANA)

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 29ª VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL

Ref. Proc. n.: 99.001.083032-8

ROCIR BACALHAO SOARES, qualificado conforme Termos de Afirmação de Necessidade Jurídica em anexo, nos autos da Execução por título extrajudicial correspondente ao processo em epígrafe, vem, através da DEFENSORIA PÚBLICA, com fulcro no art. 736 e segs. do CPC, opor os presentes

EMBARGOS À EXECUÇÃO

em face de ALBERTO DOS SANTOS BENTO, português, casado, comerciante, residente e domiciliado nesta cidade à Av Presidente Vargas n° 417/ 11° andar, pelos motivos que passa a expor:

DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA

INICIALMENTE afirma, nos termos da Lei 1060, que não tem condições de arcar com custas e honorários, sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família, pelo que requer a GRATUIDADE DE JUSTIÇA, indicando para patrocinar os seus interesses a DEFENSORIA PÚBLICA em exercício junto a esse Juízo.

DOS FATOS

Trata-se de Execução por Título Judicial, visando o Exequente o recebimento de crédito proveniente de inadimplemento de dívida oriunda do contrato de locação apresentado às fls.06 e segs. dos autos da Execução em epígrafe, no qual figurou a Executada, ora Embargante, como fiadora da locatária SALBER INDUSTRIAL E COMERCIAL LTDA.

Apresenta, como visualização do crédito executado, a planilha de fls.89/92, totalizando cerca de R$256.747,57 (duzentos e cinqüenta e seis mil setecentos e quarenta e sete reais e cinqüenta e sete centavos).

Como garantia da Execução, foi penhorado o imóvel da Embargante, situado à Rua Maria Eugênia n° 210/ apt 101, Humaitá. Nesta, restando, pois, seguro o Juízo, e viabilizando os presentes Embargos.

DA TEMPESTIVIDADE DOS PRESENTES EMBARGOS

Conforme se pode verificar do teor da Certidão de fls.115, o mandado de intimação da Embargante quanto à penhora do imóvel de sua propriedade foi juntado aos autos em 27/08/2004.

Portanto, absolutamente oportuna e tempestiva a interposição desses Embargos de Devedor, porquanto o prazo de 15 dias somente se esgotaria em 07/10/2004, tendo em vista a remessa à Defensoria Pública em 22/09/2004.

DA EXTINÇÃO DA FIANÇA

Em primeiro lugar, cumpre a Embargante apontar que NÃO É RESPONSÁVEL PELO PAGAMENTO DA DÍVIDA APONTADA NA EXORDIAL DA EXECUÇÃO, TENDO EM VISTA A EXTINÇÃO DO CONTRATO DE FIANÇA que a tornava devedor solidário ao locatário inadimplente.

Ocorre que o contrato de locação que serve como título executivo a embasar a pretensão do Embargado previa como tempo de sua vigência entre 01/01/1982 e 31/12/1986, prevista, em seguida, na mesma cláusula, que o imóvel deveria ser restituído ao locador até essa data.

Assim, o contrato de fiança, como pacto adjeto que era ao contrato de locação, extinguir-se-ía na mesma data, necessária, por certo, a anuência do fiador para que se estendesse a garantia, ao final do contrato principal.

Afinal de contas, a fiança há de ser por escrito e interpretada sempre restritivamente, na forma do que dispõe o art.819, do Código Civil, sendo claro que qualquer cláusula contratual em contrário a esse dispositivo legal não deve ser encarada como válida, porque contrária à Lei.

Dessa forma, a Embargante não pode ser responsabilizada pelo débito, realizado após o término do contrato principal e do acessório.

A Embargante não foi consultado acerca de sua disponibilidade em permanecer como fiadora do contrato, com o advento de sua renovação por prazo indeterminado, sendo inaceitável que permanecesse vinculada a uma responsabilidade dessa natureza, indefinidamente, sem ser submetido à consulta prévia.

DA IMPENHORABILIDADE DO IMOVEL DA EMBARGANTE

Em decorrência desta execução, foi penhorado o imóvel do Executado, ora Embargante, que trata-se de bem de família por ser o único bem IMÓVEL de propriedade do mesmo e por ser a moradia de sua família.

Reza o parágrafo único do artigo 1.º da Lei nº 8009/90:

“Art. 1.º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nel residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.” (grifo nosso).

DA LEI DA IMPENHORALIDADE

Por certo que a lei da impenhoralibilidade do bem de família, Lei 8009/90, em seu artigo 3º, inciso IV, ressalva o bem de família do devedor de taxas devidas em função do imóvel familiar como exceção à regra da impenhorabilidade. Mas, como demonstraremos adiante, esse dispositivo não tem aplicação no caso presente.

DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição da República, em seu art. 1º, inciso III, estabelece que o Brasil é um estado democrático de direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana.

No art. 3º, também inciso III afirma que um dos objetivos fundamentais da República é erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.

A dignidade da pessoa humana é garantida através do respeito aos direitos fundamentais, que são os direitos humanos garantidos constitucionalmente num determinado estado-nação.

A nossa Constituição estabelece como direito fundamental em seu art. 5º que a propriedade atenderá a sua função social, reconhecendo que a moradia é direito fundamental do ser humano, pois sem ela não se pode falar em vida digna.

Por outro lado, a Lei do Bem de Família é claramente um dispositivo que visa também a dar eficácia ao princípio de erradicação da pobreza, pois o crescente endividamento da população e redução da oferta de emprego fatalmente levam ao aumento da pobreza, que só se agrava se as pessoas não têm onde morar.

DA COLISÃO DA NORMA INFRACONSITUCIONAL COM OS PRINCÍPIOS CONSITUCIONAIS

Como todos sabemos, o nosso ordenamento jurídico obedece a uma hierarquia das normas, sendo que no topo da pirâmide está a Constituição.

Assim, diante dos princípios constitucionais acima mencionados, é possível admitir-se a penhorabilidade do bem de família do devedor dos alugueis?

Não se trata de qualquer bem, mas sim do bem de família, instituto garantidor de diversos princípios constitucionais.

DA APLICAÇÃO DIRETA DA CONSTITUIÇÃO ÀS RELAÇÕES INTER-PRIVADAS

Assim, o dispositivo da lei da impenhorabilidade que cria exceções há que ser afastado e deverá ser aplicada diretamente a Constituição Federal, para garantir-lhe o seu direito fundamental à moradia:

“(…) As normas constitucionais – que ditam princípios de relevância geral – são de direito substancial, e não meramente interpretativas; o recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se, do mesmo modo que qualquer outra norma, como expressão de um valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se. É importante constatar que também os princípios são normas.

Não existem, portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a preeminência das normas constitucionais – e dos valores por elas expressos – em um ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos.

Seria fácil extrair da análise de significativas orientações da doutrina e dos tribunais uma confirmação da conclusão alcançada. Pode-se, portanto, afirmar que, seja na aplicação dita indireta – que sempre acontecerá quando existir na legislação ordinária uma normativa específica, ou cláusula gerais ou princípios expressos – seja na aplicação dita direta – assim definida pela ausência de intermediação de qualquer enunciado normativo ordinário -, a norma constitucional acaba sempre por ser utilizada. O que importa não é tanto estabelecer se em um caso concreto se dê aplicação direta ou indireta (distinção não sempre fácil), mas sim, confirmar a eficácia, com ou sem uma específica normativa ordinária da norma constitucional frente às relações pessoais e sócios econômicas. (PIETRO PERLINGIERI – PERFIS DO DIREITO CIVIL, Introdução ao Direito Civil Constitucional, Ed. Renovar, 1997, pg. 11/12) grifos nossos

DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 3º DA LEI 8009/90

Diante do que foi acima exposto, o dispositivo que permite a penhora do bem de família é claramente inconstitucional, por ferir os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade e da erradicação da pobreza, dentre outros, devendo ser declarado como tal, nos termos das regras de controle incidental de constitucionalidade, o que desde já se prequestiona, para, se for o caso, encaminhar-mos a matéria na corte constitucional, o Supremo Tribunal Federal.

DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O artigo 3º da Lei 8009/90 também está eivado de inconstitucionalidade por tratar de forma flagrantemente diferente pessoas em igualdade substancial. Como proprietários de apenas um bem, deverá este ser sempre considerado um bem de família.

O tratamento diferenciado é permitido pelo ordenamento, desde que seja para igualar os indivíduos em situação de real desigualdade, mas nunca para quem está em igualdade de condições. Qualquer norma infraconstitucional que pretenda esse tratamento diferenciado de iguais está eivada flagrantemente de inconstitucionalidade por ferir o princípio da igualdade.

DO PREQUESTIONAMENTO

Desta forma, prequestiona-se a lesão aos princípios constitucionais da igualdade e da função social da propriedade, bem como, ao direito fundamental da moradia.

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, requer-se a V.Exa.:

  • o recebimento dos presentes EMBARGOS e a distribuição por dependência aos autos principais, em epígrafe;
  • a suspensão da EXECUÇÃO em apenso;
  • a citação do Embargado, para responder aos presentes, se desejar, sob pena de revelia;
  • ao final, sejam julgados PROCEDENTES os Embargos, para o fim de ser decretada a nulidade da Execução em apenso, ou, alternativamente, desconstituir a PENHORA do bem constrito, por constituir-se bem de família do executado.

Requer, ainda, seja o embargado condenado em custas e honorários, estes recolhidos em prol do Centro de Estudos Jurídicos da DPGE/RJ (lei Est. 1146/87).

Protesta por todos os meios de prova em direitos admitidos, atribuindo-se aos embargos o valor de R$ 256.747,57 (duzentos e cinqüenta e seis mil setecentos e quarenta e sete reais e cinqüenta e sete centavos).

Pede deferimento.

Rio de Janeiro, 29 de Setembro de 2004.

advogado teresina-PI